segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Entrevista para o Não Só o Gato

Falar sobre a Guida é sempre um prazer. Quando é com alguém que realmente se interessa, não apenas por ela, mas por todo o processo e seu significado, é simplesmente gratificante.

E é assim que defino essa entrevista que dei para a Fernanda Miranda do Não Só O Gato. Tê-la no meu estúdio e mostrar e falar sobre como a Guida surgiu não é trabalho, é lazer.

Não Só o Gato: Como era a Rosana criança?

Rosana Urbes: Eu era a criança que na escola a professora chamava pra desenhar na lousa. Como eu tenho essa coisa de desenhar desde muito cedo, meu pai acabou me colocando numa escola de desenho profissionalizante. Eu estudei lá por um tempo, mas daí chegou uma fase difícil, quando eu tinha uns 17 anos, que eu não podia mais pagar a mensalidade.

NSG: Aí você parou?

Rosana: Não, porque o dono da escola me ofereceu um emprego para eu trabalhar na secretaria da escola e continuar estudando, e eu aceitei. Mas como secretária eu era muito relapsa. Teve um dia em que o dono da escola chegou na minha sala e eu estava com várias tintas espalhadas na mesa, pintando aquarela, tudo molhado, com um monte de recibo no meio. Eu pensei, “bom, agora ele me joga pela janela”. Mas aí ele olhou as pinturas e disse: “Rosana, tem uma vaga pra ser professora de desenho aqui na escola. Você não quer dar aula ao invés de ficar na secretaria?”. E eu fui. E foi incrível. Foi quando compreendi que desenho poderia ser trabalho, que eu poderia participar na vida com isso.


NSG: E depois?

Rosana: A partir daí fui trabalhando com desenho. Trabalhei em projetos para agências de publicidade, para a Folha de S. Paulo. E aí, no começo dos anos 90, comecei a aprender a fazer animação, a intervalar. Nessa época, tinham quatro estúdios de animação no Brasil e umas 20 pessoas trabalhando com isso aqui.
Aí mais tarde, em 96, eu fui trabalhar na Disney em Orlando. Eu cheguei para desenhar o filme Mulan, que eu adoro e que foi feito todo à mão. Também desenhei a Nani, que é a irmã da Lilo [de Lilo & Stitch]. No Tarzan eu desenhei a Jane. E eu fiquei muito feliz em desenhá-las, porque eu curto muito trabalhar com personagens femininos.
Também nessa época passei a coordenar as sessões de modelo-vivo do estúdio da Disney. E desse tempo eu vejo que há uma semente do que viria a ser a Guida, porque nessas sessões de modelo-vivo eu descobri o meu desenho, meu estilo. Eu vi que eu tenho prazer no desenho vivo, no orgânico, no rascunho solto. O processo de Guida começa antes desses três últimos anos em que me dediquei à ela.
E outro elemento de Guida que teve nessas sessões de modelo-vivo é o próprio assunto da minha animação. Veio uma modelo uma vez na Disney, a Sandra, que era uma mulher de uns 200 kg. E quando ela tirou a roupa pra posar percebi que ela parecia uma fada. Ela fazia umas poses lindas e flutuantes, que de certa forma já se conecta com a Guida. E todos os desenhistas da sala passaram a pedir para eu levar a Sandra nas outras sessões, porque todo mundo achava ela linda. Ela mesmo dizia: “Eu sei que eu sou linda”.

NSG: E você quis passar isso para a Guida.

Rosana: Toda a sensação que eu tive ao ver a Sandra eu quis passar para o processo da Guida. E eu escuto muito que a Guida é linda.

NSG: E quando você começou a fazer a Guida?

Rosana: Eu queria fazer um filme meu. Já tinha voltado ao Brasil, abri uma produtora, mas estava fazendo outros trabalhos. Aí o Jonas Brandão, um amigo, me ligou um dia e disse: “Ro, tem um edital de animação rolando, só que tem que entregar o projeto daqui três dias. Você tem algum?”, e eu falei, “tenho”. Mas não tinha. Daí eu me tranquei no quarto e em três dias eu escrevi o primeiro roteiro da Guida. Mas o edital não rolou.
Depois de mais ou menos um ano, eu conheci o Thiago Minamisawa, que virou um grande amigo, e ele chamou o jornalista Bruno Castro para sentarmos e reescrevermos o projeto juntos. Aí apresentamos e ganhamos o Prêmio Estímulo de Curta-Metragem de 2010, da Secretaria da Cultura. Aí começamos a trabalhar. Eles se tornaram também os produtores executivos do curta. Depois contrataram a Belisa Proença, que entrou como estagiária, foi resolvendo todos os pepinos e se tornou a produtora do curta.

NSG: E como foi esse mergulho no processo de construção da personagem?

Rosana: Foi realmente um mergulho. Desenhar a animação foi só a arrancada final, porque eu fui mudando a história, fui pesquisando coisas. O filme tem a questão da vida que se renova, a da mulher velha e de qual é seu espaço social, mas tem outras questões, como a do modelo-vivo. Eu comecei a pesquisar sobre modelo-vivo na história da arte e passei a perceber uma injustiça muito grande. Por causa desse meu envolvimento com o desenho, eu sei o quão importante é o modelo-vivo. Ele sugere poses, ele é ator, ele coloca a vida dele na pose. Se eu desenhar um modelo sem graça, o desenho vai ficar sem graça. E aí eu fiquei pensando nessas pessoas que posaram para grandes obras de arte e a gente nem sabe quem é.
Na Guida mesmo peguei referências com Tuna Dwek, uma atriz que é uma força da natureza. Em algumas cenas da animação eu pedi para ela fazer a Guida, como quando a Guida acorda e enfia o despertador embaixo do travesseiro. Isso foi Tuna, ideias dela. Na sequência de modelo-vivo na Guida, eu filmei a Priscila Carbone, que é modelo e também foi incrível no processo da Guida.
Por isso que eu digo o encanto que é o making of. Talvez eu ache o processo de fazer a animação até mais fascinante do que a animação pronta. Porque você parte do nada, você cria uma realidade, você não sabe de onde as coisas vão sair.

NSG: Fale mais sobre as outras questões que você quis colocar dentro do filme.

Rosana: Tem a questão da velhice. Desde o primeiro rabisco da Guida tinha essa questão de resistência a um certo entendimento de que envelhecer é morrer. E envelhecer é só envelhecer, você está vivo. E essa angústia existe em mim e ficou mais forte depois que eu fiz 40 anos. Eu senti que algumas coisas mudaram em mim, mas é mudar e não piorar.
Mas também tem a angústia da mulher e de sua forma física. Por exemplo, eu criei certa vez uma personagem gorda, fiz muitas ilustrações dela. Mandei algumas dessas ilustrações para uma amiga que dá aula de canto, a Marina de Bonis, que fez pesquisa musical para o curta também. Ela colocou num quadro e pendurou em seu ateliê e falou que suas alunas disseram “mas ela é tão gorda e tão livre e de bem com o corpo dela. Eu que sou metade do tamanho dela tenho complexo de ser gorda”. Então eu senti que uma das angústias era essa. Tem momentos em que eu me acho gorda, que eu coloco uma roupa que disfarça e daí vejo que muito da espontaneidade da vida da mulher se perde nessa coisa de esconder o corpo, de se conter. É uma prisão por causa da imposição midiática do que é a forma ideal da mulher.

NSG: Essas são as suas angústias, mas o público pode interpretar a Guida de várias outras formas além dessas. Por isso, queria saber qual foi a reação das pessoas ao ver o seu filme e quais foram os elogios mais bacanas que você recebeu.

Rosana: Nossa, teve tanta coisa linda. Teve uma mulher de 66 anos que veio falar comigo. Há quatro anos ela tinha resolvido posar nua para aulas de modelo-vivo. Ela disse que “Guida” era sobre ela, sobre sua história. Ela falou uma das coisas mais lindas: “Eu trabalhei por mais de 30 anos com trabalho burocrático e eu gostava do que eu fazia, mas não fazia o que eu gostava”. Isso é Guida. Ela aprende a ter paz com sua situação de vida, mas isso não significa que ela não tenha mais coisas dentro dela.

NSG: O que você lê, o que você assiste nos cinemas?

Rosana: Eu sou cinéfila. Eu vi tudo de Bergman, tudo de Tarkovski, de Fellini. Vi tudo do Studio Ghibli. E sou muito fã de animação experimental.

Confira também o texto lindo da Fernanda no site clicando aqui

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